A crise financeira dos estados evidenciou os riscos da guerra fiscal travada por esses governos nos últimos anos e, agora, poderá levar alguns deles a serem forçados a uma retirada abrupta dessas políticas. A insegurança jurídica que sempre pairou sobre as empresas que recebem incentivos fiscais passou a ameaçar também os estados. O primeiro exemplo veio do Rio de Janeiro: a Justiça proibiu, em 26 de outubro, o governo estadual de conceder, ampliar ou renovar benefícios fiscais ou financeiros até apresentar, dentro de 60 dias, um estudo sobre o impacto desses incentivos. O problema, alertam economistas, é que um desembarque solitário da política de benefícios tributários deixa o estado em situação muito desfavorável na guerra fiscal. O mais recomendável, afirmam os especialistas, seria uma retirada gradual desses incentivos, e de forma coordenada entre os diferentes estados.
O economista Bernard Appy, do Centro de Cidadania Fiscal da FGV-Direito, estima que, a cada ano, o conjunto de estados da federação deixa de arrecadar entre R$ 50 bilhões e R$ 60 bilhões devido à concessão desses benefícios. A política, que surgiu como uma estratégia dos estados menos industrializados para atrair investimentos, acabou ganhando contornos de vale-tudo na disputa por receber empresas, diz Appy. O Estado do Rio, por sua vez, argumenta que a decisão da Justiça ameaça a captação de R$ 20 bilhões e a criação de 25 mil empregos nos próximos anos.
— No começo, a guerra fiscal foi instrumento de desenvolvimento regional. Hoje, não passa de um leilão, onde uma empresa que vai investir no Brasil sai vendo quem lhe dá mais incentivos. Para os estados, virou apenas renúncia de receita. Entre as empresas, gera distorções competitivas, porque firmas de um mesmo setor podem ter um custo muito menor de produção em determinado estado por conta dos incentivos — avalia Appy, que promoveu ontem, em São Paulo, um seminário com especialistas e secretários de Fazenda de alguns estados para debater soluções.
INSEGURANÇA JURÍDICA
Appy acrescenta que a decisão da Justiça do Rio mostra que a insegurança jurídica, que até então pairava apenas sobre as empresas beneficiadas — já que, como essas concessões não são submetidas à aprovação do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), podem ser questionadas na Justiça pelo estado que se sentir prejudicado — agora ameaça as unidades da federação que, a exemplo do Rio, também vivem dificuldades financeiras e podem ter suas políticas de incentivos fiscais questionadas.
Especialistas em contas públicas fazem críticas à decisão da Justiça do Rio, porque ela tira apenas um estado da disputa.
— Como os estados vizinhos seguem promovendo a guerra fiscal, o efeito pode ser atrair para lá os empreendimentos hoje instalados no estado, com perda de produção e de emprego. O desembarque precisa ser ordenado, planejado, pactuado e, sobretudo, realizado ao mesmo tempo e em todo território nacional. É inócuo um estado tentar o fazer sozinho, ele só estará ajudando os demais estados, sobretudo os seus vizinhos — afirma o economista José Roberto Afonso, pesquisador do Ibre/FGV e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público.
Guilherme Mercês, economista-chefe do Sistema Firjan, concorda que é necessário um pacto nacional, mas considera que ele só será viável se a legislação tributária do país passar por mudanças:
— A guerra fiscal nada mais é do que um reflexo da alta carga tributária do Brasil, que cria um ambiente predatório. A discussão da reforma tributária é fundamental. Do contrário, o ambiente de guerra fiscal vai prevalecer. Não pode só o Rio baixar a arma, com todos os outros armados, pois será o primeiro a morrer. Isso representa o risco de um novo ciclo de esvaziamento econômico, como ocorreu nos anos 1980.
Levantamento da Companhia de Desenvolvimento Industrial (Codin) do Estado do Rio mostra que a decisão da Justiça colocou em risco a captação de investimentos da ordem de R$ 20 bilhões. Esse montante viria de 113 empresas que hoje estudam a possibilidade de se instalar no estado em troca da redução ou postergação do pagamento de ICMS. Sem poder oferecer esse atrativo, o governo teme que elas optem por outro estado. Segundo a presidente da Codin, Maria da Conceição Ribeiro, o levantamento será apresentado à Justiça, com o intuito de mostrar que a decisão vai agravar ainda mais a situação financeira do Estado do Rio.
— Na situação na qual estamos, o que é melhor: uma empresa que pague menos imposto e gere empregos, ou nenhuma empresa e nenhum emprego? — questiona a presidente da Codin.
Desde o dia 26, o estado está proibido de conceder, ampliar ou renovar benefícios fiscais ou financeiros. A liminar foi concedida pelo juiz Marcelo Martins Evaristo da Silva, da 3ª Vara da Fazenda Pública do Rio, que acolheu pedido do Ministério Público Estadual (MP-RJ). Ele foi procurado pela reportagem, mas limitou-se a informar, por e-mail, que “a decisão abrange todo e qualquer benefício que implique renúncia de receita”. Um relatório do Tribunal de Contas do Estado (TCE), citado no processo, apontou que o estado deixou de arrecadar R$ 138 bilhões em ICMS entre 2008 e 2013. A Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico contestou esse valor, que, segundo estudo do governo, seria cerca de R$ 9 bilhões menor. O órgão afirmou ainda que, dos R$ 129,8 bilhões de benefícios fiscais em vigor entre 2008 e 2013, somente um quarto, ou R$ 32,4 bilhões, foram renúncia efetiva. O restante refere-se a postergação de pagamento de imposto — ou seja, haverá receita futura —, ou serão compensados por outros elos da cadeia.
Um projeto de lei com motivação e determinação semelhantes às da Justiça, de autoria de quatro deputados estaduais, foi aprovado em votação única no começo deste mês na Alerj. O texto impede o estado de conceder, por quatro anos, financiamento, benefício, incentivo, fomento econômico ou investimento estruturante a qualquer empresa sediada ou que venha a se instalar no Rio. Foi encaminhado ao governador Luiz Fernando Pezão, que pode sancioná-lo ou vetá-lo. Pezão ainda não se manifestou sobre o projeto, mas, em evento na Firjan, no último dia 28, ainda na condição de governador licenciado, afirmou que, enquanto estivesse no governo, continuaria concedendo benefícios fiscais.
De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento, nos últimos seis anos, a política fiscal atraiu investimentos na ordem de R$ 19 bilhões ao Estado do Rio, que geraram 31 mil empregos. Números compilados por José Roberto Afonso apontam, no entanto, que, entre 2010 e 2015, a receita corrente líquida fluminense (que é a soma das receitas tributárias, deduzidos os valores das transferências constitucionais) só cresceu 5,5%. A relação receita tributária/PIB também não vai bem: cai há pelo menos cinco anos. Em 2010, a receita tributária correspondia a 6,47% do PIB do estado. No ano passado, ficou em 4,18%.
— A arrecadação de todos os governos está caindo. A recessão, a desindustrialização e a crise de crédito são fenômenos nacionais. O Rio é muito afetado pela crise do complexo de petróleo, e não apenas pelos royalties, mas por toda produção e emprego que foram cortados em torno da Petrobras. As importações também pesam muito no Rio e vêm caindo fortemente — explica Afonso.
Segundo o economista, com a guerra fiscal, novos empreendimentos se instalaram no estado, mas não resultaram em aumento de arrecadação por causa dos incentivos tributários. Mas o grande problema dessa disputa, diz, é que o contribuinte em potencial pode ser “roubado” pelo vizinho:
— Um estado que passe a conceder muitos incentivos abre mais mão do seu futuro do que perde algo que já tinha.
PROPOSTA: ZERAR BENEFÍCIOS EM 15 ANOS
No Estado do Rio, além de redução da alíquota do ICMS, empresas podem ganhar terreno para instalação — exclusividade das montadoras — e, em alguns casos, alívio no IPTU, negociado com o município, explica Conceição. Os incentivos são apenas para expansão de empresas já instaladas ou para novas companhias, e, em caso de inadimplência, o benefício é retirado. Mesmo com esses incentivos, nos últimos dez anos R$ 9,2 bilhões em investimentos privados e 30 mil empregos foram para outros estados, como Goiás, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e São Paulo, diz a presidente do Codin.
Quando da decisão, o promotor Vinícius Leal Cavalleiro, que integra o grupo que ajuizou a ação, disse que falta transparência às concessões. Procurado, ele disse não ter tempo disponível para atender à reportagem. Para Afonso, do Ibre/FGV, renúncia fiscal é uma forma de gasto público e deve ser avaliada e passar pelo mesmo controle que qualquer outro gasto:
— É uma urgência, no Brasil, que se verifique qual foi o retorno de cada incentivo concedido, comparar com seu custo e com seu objetivo. Mas isso não é um problema localizado do Rio.
Durante o seminário de ontem, Appy conta ter sido elaborado um esboço de solução para encerrar a guerra fiscal entre os estados, sem prejudicar as empresas beneficiárias e gerando arrecadação maior aos cofres públicos:
— Uma direção é convalidar os benefícios já concedidos, para que não corram o risco de ser questionados na Justiça, e estabelecer que teriam duração de 15 anos, com o incentivo sendo reduzido gradualmente, até zero, nesse período. E que se aumentem as penalidades para o estado e o gestor público que descumprirem a norma. Isso exigiria uma emenda constitucional. É projeto para ser amadurecido nos próximos dois anos, para ser apresentado ao próximo presidente da República, em 2019.
Não houve consenso, no entanto, quanto à proibição de novas concessões de benefícios.
Procurados, os governos de São Paulo, Paraná e Santa Catarina ressaltaram que os incentivos fiscais concedidos não são o único fator de decisão para as empresas, que também avaliam a qualidade da infraestrutura e da mão de obra, e o nível da atividade econômica estadual. O governo do Paraná disse ainda que a complexidade da legislação tributária, principalmente em relação ao ICMS, abre precedentes para concessões. Goiás ressaltou que o seu programa de benefícios levou o PIB estadual a crescer dez vezes nos últimos 15 anos. Já Minas Gerais afirmou que a sua política de incentivos fiscais visa, entre outras coisas, a prevenir perdas de arrecadação decorrentes da migração de empresas para outros estados.