O município de Dourados, a 229 quilômetros de Campo Grande, é o segundo mais populoso de Mato Grosso do Sul, com cerca de 220 mil habitantes. Mesmo com a população praticamente quatro vezes menor do que na capital, a cidade é a recordista de casos do novo coronavírus no estado. E o surto de casos de Covid-19 em um frigorífico, seguido de falta de medidas restritivas mais severas, ajudam a explicar como o município se transformou no epicentro de propagação da doença.
Até esta quarta-feira (1°), Dourados havia registrado 2.670 casos de Covid-19, com 26 óbitos - 179 casos e 15 mortes a mais do que na capital. A preocupação das autoridades também é com o aumento da ocupação de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) no município, que chegou a 60% da capacidade, com 34% deles ocupados por pacientes confirmados ou suspeitos de coronavírus. A secretaria de saúde de Dourados afirma que está habilitando novos leitos para atender a demanda.
Com uma média de mais de 80 casos a cada 24 horas na última semana, a prefeitura diz que está discutindo novas ações com o núcleo técnico e o Comitê de Operações de Emergência para conter o avanço da doença. Já a SES afirma que continua a fazer recomendações, no fornecimento da testagem e de EPIs, além de ações de vigilância epidemiológica no monitoramento dos casos, que seria de responsabilidade exclusiva do município.
Os dois primeiros casos de Covid-19 em Dourados foram registrados no dia 28 de março. Na época, o estado tinha 31 casos da doença e nenhum óbito. De acordo com a secretaria de saúde do município, desde então foram elaborados decretos de restrições no comércio e de isolamento social, para conter o avanço do coronavírus na cidade.
Ainda em março, médicos, infectologistas órgãos públicos de Dourados e Ministério Público do Trabalho (MPT) se uniram para criar o Comitê de Gerenciamento Emergencial de Crises do município. Conforme Jeferson Pereira, procurador do Trabalho de Dourados e membro do Comitê, um planejamento de gestão de crise foi elaborado no início da pandemia e continuava a ser aprimorado com estudos técnicos conforme a doença progredia.
Pouco mais de dois meses depois, no dia 29 de maio, o município havia registrado 236 casos da doença, com um óbito, de um morador da cidade que faleceu no Tocantins. O "achatamento da curva" do coronavírus, porém, começava a desaparecer em Dourados, com a descoberta dos primeiros casos em um frigorífico com mais de 4 mil funcionários.
Os casos se espalharam pelo frigorífico, que chegou a testar mais de mil funcionários positivos para Covid-19, incluindo o primeiro de um indígena no estado, levando a doença às aldeias Bororó e Jaguapiru, também em Dourados. De acordo com Pereira, a indígena viajou para o sul do estado sem consentimento do frigorífico, trabalhando praticamente uma semana na empresa sem apresentar sintomas e potencialmente transmitindo o vírus. Até a tarde desta terça-feira (30), 145 indígenas das aldeias testaram positivo para coronavírus. Já na cidade, os registros aumentavam exponencialmente a cada dia, chegando a um aumento de 1.053% em apenas um mês, entre 29 de maio e 29 de junho.
"A grande onda na cidade começou com o frigorífico. Após a contenção desse surto na empresa, a transmissão comunitária, aquela que ocorre através das atividades habituais e de onde não tem o contato definido, se tornou amplamente disseminada tanto no usuário da saúde pública como privada. Isso, associado à uma flexibilização das normas de isolamento social, fez com que a cidade tivesse um aumento significativo de casos", explica Mariana Croda, infectologista e membro do Comitê de Operações de Emergências (COE) da Secretaria de Estado de Saúde.
Os números crescentes fizeram a SES declarar o município como o epicentro da doença no estado. Não demorou para que a cidade ultrapassasse Campo Grande em casos de coronavírus. "Se olharmos outras situações que também tiveram frigoríficos, o cenário foi diferente. Em Dourados, permanecemos bem flexibilizados, permitindo que essa transmissão continuasse e ainda passasse para outros municípios da região. Com isso, perdemos o controle", afirma Mariana.
O membro do Comitê de Gerenciamento Emergencial de Crises do município concorda com a infectologista. "O frigorífico realizou várias normas de biossegurança e adotou as medidas propostas pelo município e Ministério do Trabalho e conseguimos conter o contágio lá dentro. Porém, os funcionários que foram infectados não respeitaram as indicações para permanecerem em casa ou não realizarem aglomerações, o que fez com que a incidência da doença crescesse", declara Pereira.
De acordo com a secretaria de saúde de Dourados, o município tentou conter o avanço da pandemia por meio de 14 decretos, contendo desde restrições e mudanças de horários em comércios até fechamento de igrejas e proibição de aglomerações. Enquanto a administração municipal atribui o aumento de casos ao baixo índice de isolamento social mesmo com as medidas restritivas, a infectologista do COE, porém, aponta para falhas na condução da prefeitura.
"A cidade não ter adotados medidas restritivas mais severas ou até mesmo o lockdown foram fatores que propiciaram o aumento dos casos. O único termômetro utilizado pelo município foi o número de leitos. Então o pensamento da prefeitura foi o seguinte: "enquanto tenho leitos, vou deixar a população exposta e quando estiverem acabando os leitos, faço os fechamentos necessários". Isso pode sim ter motivado tanto crescimento", diz Mariana.
De acordo com Pereira, diversas medidas restritivas foram indicadas pelo Comitê, mas os profissionais envolvidos sentiam muita resistência do Poder Executivo em adotá-las. "Em 17 de abril, a prefeitura reabriu o comércio por conta própria, assim como poucos dias depois também ampliou o toque de recolher sem qualquer aval técnico. Em contrapartida, propusemos uma multa de até R$ 10 mil para quem desobedecesse o isolamento social, votamos notas técnicas para monitoramento presencial de casos suspeitos pela Vigilância Epidemiológica e várias outras ações que não foram aprovadas pelo Poder Executivo", alega.
Municípios vizinhos a Dourados, como Rio Brilhante e Fátima do Sul também viram os casos dispararem. Ambas as cidades estão entre as seis com maior incidência de Covid-19 no estado. "Muitas pessoas trabalham, fazem compras, viajam para Dourados, por ser a maior cidade da região. Esse crescimento também teve muito a ver com o frigorífico, já que muitos dos funcionários são de cidades vizinhas e acabaram transmitindo o vírus nesses municípios", diz a membro do COE, Mariana Croda.
De acordo com ela, a SES sugeriu diversas ações, inclusive com notas técnicas de infectologia e até Ministério Público Estadual para o fechamento da cidade. No entanto, de acordo com a secretaria de saúde de Dourados, as principais ações realizadas no momento são as testagens por drive-thru, em quem chega e sai do município, a ampliação da Vigilância Epidemiológica, e o monitoramento dos casos positivos através da Atenção Primária.
Segundo o procurador do trabalho do município, a calamidade enfrentada por Dourados atualmente poderia ser contida. "Se a prefeitura tivesse seguido o planejamento e o que foi orientado pelo Comitê de Gerenciamento Emergencial de Crises, com certeza teríamos evitado diversas situações", finaliza Pereira.